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Os exilados

 

Voltar ao Nordeste, não por saudade, nem por bairrismo, tão pouco de um modo exterior, como se procurasse por um lugar entre coordenadas precisas: voltar para compreender o que há do Nordeste em mim.

Voltar com saudade, não da terra, não dos costumes ou do folclore, mas voltar com saudade do meu pai, que tinha o Nordeste em sua alma, não em seus hábitos.

Na verdade, o Nordeste, para ele, resumia-se a poucos gestos: comer cuscuz todo dia, ouvir novamente Asa Branca, "a canção mais bonita do mundo", e cometer um ato de bravura de vez em quando - ou de brabeza, que é outra coisa, ele advertia.

Lá em casa, nos acostumamos a vê-lo como um sujeito manso, tímido até, mas onde cresceu, em Catende, zona da mata de Pernambuco, havia gente que lembrava de um jovem magro, elegante e brabo, o Amarelo de Zé de Sales, que, para a surpresa de todos, tornou-se de um dia para o outro, no final dos anos 60, protestante, indo logo estudar em um seminário rural, onde eu nasci. Queria ser pastor.

Do Nordeste, lembro agora, herdei dele achar que João Cabral de Melo Neto é o melhor poeta brasileiro de todos os tempos, admirar a bravura também, e me arrepender das brabezas.

Aprendi a preferir, igual ao meu pai, a calma e a paciência, virtudes que exigem muita prática de mim até hoje. E fui ser um pouco como ele era: vaidoso ao ponto de se tornar acanhado - ou talvez acanhado ao ponto de se tornar vaidoso.

Como se vê, tive pouca oportunidade de me tornar um nordestino típico. Ser filho de pastor protestante durante a ditadura militar era sofrer uma espécie de duplo exílio, do país e do mundo. Como brasileiro, restava-me ser patriota apenas; não podia ser como o Belchior era, ou como o Caetano Veloso, o Chico Buarque, e tantos outros. Como um bom garoto cristão, além de patriota, deveria ser também casto e separado do mundo.

O nordestino típico, porém, penso agora, também vive ao seu modo um exílio: ele não sabe o que é ser nordestino - sabe o que é ser gente apenas: quem não gosta de forró? De xaxado, de baião, de cordel, de vaquejada, quem? De rapadura, de cuscuz, ah! De bolo de rolo! Não gostar dessas coisas é não gostar da vida!

Há muitos desses nordestinos típicos que, por necessidade ou por oportunidade, um dia vão para longe viver em outras terras e fazem contato com outros modos de vida. Têm assim oportunidade de finalmente se tornarem nordestinos.

Muitos desses emigrantes, porém, acabam não descobrindo nunca o que é ser nordestino; eles continuam gozando folgadamente o Nordeste, louvando o Nordeste, achando que o Nordeste é o berço da civilização brasileira, uma espécie de Atenas tropical, que teria ampliado a sua influência pelo resto do Brasil - dos seringais do Acre ao bairro de São Cristóvão, no Rio; de São Paulo a Brasília, cidades que praticamente construíram sozinhos; do Oiapoque ao Chuí, onde se encontra um tipo de nordestino muito peculiar, que veste bombacha e toma chimarrão.

O pernambucano Gilberto Freyre foi um desses nordestinos que emigrou. Adolescente ainda, saiu de Recife para se educar nos Estados Unidos. Estudou durante algum tempo num colégio batista, onde concluiu o high school.

Depois foi morar em Nova Iorque, onde, aos 20 anos, encontrou jovens de todo mundo na universidade e, de repente, caiu em si: o hindu sabe o que é ser hindu, o árabe sabe o que é ser árabe, o japonês sabe o que é ser japonês, mas eu não sei o que é ser brasileiro! Só então tornou-se nordestino de fato, embora continuasse a viver no exterior ainda por alguns anos, primeiro na Inglaterra e depois em Portugal. Em Coimbra, começou a escrever "Casa-Grande e Senzala", um clássico que ajudou a gente a descobrir enfim o que é ser brasileiro e, como brasileiro, o que é ser nordestino - ou vice-versa, lembraria um nordestino típico. 

 

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