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A recusa

Refusal, de Maria Sidljarevich.
 

Em 2020, todos nós viramos pacientes terminais ao mesmo tempo, uma experiência que até então era, para a nossa geração, absolutamente privada e familiar, ocorrendo aqui e ali, de vez em quando, sob a maior discrição, a não ser que você fosse uma dessas celebridades a frequentar manchetes ou alguma subcelebridade a transmitir nas mídias sociais tudo o que acontece em sua vida.

Há poucos dias, eu vasculhava alguns reports da Gartner e, num deles, encontrei uma lista dos riscos existenciais que estamos correndo já faz um bom tempo e preferimos não levar devidamente a sério: além das pandemias, o estudo comentava a inteligência artificial, as armas nucleares, o aquecimento global e a biotecnologia.

No caso da covid-19, eu achei desde o início um exagero falar em extinção da espécie, pois a maioria de nós, supus, sobreviveria à doença terminal coletiva, embora ela não fosse exatamente uma gripezinha. Agora, com o mundo preparando-se para a vacinação em massa no próximo ano, começo a passar da suposição à certeza, e a mazela fatal, que o povo celebra desde logo ter vencido, permanece somente minha, embora de uma outra forma.

Mesmo que eu sobreviva ao vírus à custa de mais algumas máscaras, talvez seis meses mais de isolamento e um bocado de sabão e de álcool em gel até que a vacina chegue, não estarei definitivamente curado do mal nesta encarnação. Continuarei lembrando-me todo dia de um pensamento que me ocorreu certa ocasião quando recebi a notícia de que um velho amigo meu fora diagnosticado com câncer. Naquele momento, ocorreu-me consolá-lo com uma desculpa verdadeira, informando-lhe o óbvio, que a diferença entre ele e eu talvez fosse a mera ignorância minha sobre a hora exata em que a morte finalmente terminaria comigo, instante que poderia chegar para mim muito antes do seu falecimento, quando, por exemplo, logo mais ao meio-dia, eu degustasse num restaurante respeitável uma salada mal higienizada.

Enquanto a pandemia não acaba e a salada continua sã, todavia, vou conseguindo sobreviver bem à quarentena, até melhor do que antes, confesso, já que o meu gosto atávico pelo meio do mato e pelo isolamento tornou-se um modo de vida respeitável e, com o trabalho remoto, lucrativo.

Ganhei mais tempo para ler, o que, no final das contas, é a fortuna que eu prefiro acumular - uma herança na verdade, lembrar-me-ia Jacques Derrida, uma herança cuja riqueza me intima: "Só um ser finito herda", diria ele, "e sua finitude o obriga. Ela o obriga a receber o que é maior, mais velho, mais poderoso e mais durável do que ele. Mas a mesma finitude o obriga a preferir, a sacrificar, a excluir, a abandonar.”

Algo em nós, porém, talvez eu lhe respondesse, resiste à finitude, e abandonaria qualquer espólio em troca da eternidade. Por isso, aproveito também a pandemia para escrever com mais frequência, o que me obriga a preferir, a sacrificar e a excluir com uma redobrada atenção. Para mim, como anotou em seu Diário Volúvel Enrique Vila-Matas, fazê-lo é afastar-me, deter-me, demorar-me, retroceder, desfazer, recusar-me precisamente a essa corrida mortal, a essa frenética velocidade geral, como se vivêssemos não para viver, mas para já estarmos mortos.

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