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Quem anda distraído não sonha acordado


Héber Sales


Muita gente diz: se você prestar atenção, vai perceber a realidade como ela é. Eu digo, porém, que se você de fato prestar atenção, primeiro, vai sonhar, e depois, se continuar atento, verá que a realidade e o sonho são feitos da mesma matéria.

Os que viajam com pressa não sabem disso. Para eles, a distância entre dois pontos é calculada em km ou minutos, elementos que da realidade nada têm. Não têm, por exemplo, aquelas quatro montanhas e três vales que separam a tua casa da minha. Se eles prestassem um pouco mais de atenção, veriam que a estrada, como a cidade, também conta com os seus quarteirões: depois de passar por três cumes, você dobra o último deles e chega onde eu moro.

Esse percurso pode ter os 23 km assinalados naquela placa oficial à beira do asfalto, ou pode ter muitos mais. Depende do estado de espírito de quem nele transita. A saudade, já descobrimos, costuma encompridar os caminhos. Também acontece de, por não desejarmos chegar logo, chegarmos mais rapidamente ainda - levamos uma má notícia ou uma má notícia nos aguarda?

Outro dia, enquanto eu voltava daí, já cansado e ansioso para estar logo em casa, tomar o meu banho quente, jantar alguma coisa e ver mais um episódio da minha série favorita, desisti de tudo isso porque, assim que alcancei o topo do segundo monte, me vi num dos vértices de um triângulo retângulo, pronto para descer por uma hipotenusa que se espelhava sobre mim, na forma de um céu azul pontilhado de pequenas nuvens brancas muito compactadas. Redobrei a atenção e percebi que todas elas tinham a mesma forma e tamanho, mantendo entre si uma distância regular de azul. E foi assim que eu notei. Não eram nuvens apenas, mas uma legião de anjos que marchava em silêncio um pouco acima da terra em direção ao pôr-do-sol. Impressionado, reduzi a velocidade para observar melhor. Não me satisfiz. Tive que estacionar o carro. Queria registrar a parada. Foi quando algo muito estranho aconteceu: eu tirei a foto que desejava e acabei ficando preso naquela imagem. Desde então que eu não chego em casa ainda.

Alguns dirão que eu deliro e aconselharão: "não se envolva em tais experimentos". Ignore-os. É dessa forma que você estará verdadeiramente conhecendo o caminho. Siga na estrada sem pressa e deixe-os em seu mundo irreal dos km e minutos contados. Continue prestando atenção e sonhando. É no sonho que estão os detalhes que, para não nos distrairmos demais - como um animal de carga se distrairia caso não usasse antolhos -, ignoramos durante as horas produtivas do dia, mas que à noite, durante o sono, o inconsciente, esse almoxarife que nada ignora ou despreza, nos lembra. Fica tudo por sua conta, já que a nossa consciência, como uma perfeita prostituta em serviço, só considera aquilo que lhe garante o favor dos outros.

Então, quando você passar novamente por essa estrada, que venha à noite e observe quantos relâmpagos mudos brilham lá em cima no céu escuro. São inúmeros sempre. E você, é quase certo, logo pensará no pior: muita chuva, pouca visibilidade e pista molhada, a fórmula perfeita para um desastre. Enquanto pensa e especula, no entanto, você perderá o contato com a realidade e o sonho. Não verá que a sua nave avança sobre o terreno de um planeta distante no sistema solar, cuja atmosfera é carregada de eletricidade, e o firmamento rarefeito, varrido por tempestades eletromagnéticas.

Não pense. Preste atenção. Quem anda distraído não sonha acordado.


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