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O fundo falso da linguagem

Héber Sales

Poesia é revelação - não de algo sobrenatural, nem de um fato real, mas de uma imagem mental ou de um sentido ignorado pela ideologia oficial e pelo senso comum, embora esteja previsto, dialogicamente, na língua.

É um lampejo cuja "verdade" é reconhecida pelos falantes como descoberta, ou seja, algo que estava latente e já existia no inconsciente coletivo, e, de repente, foi resgatado e revelado à luz do dia por alguém que se esgueira pelas frinchas do fundo falso da linguagem, o poeta.

Há poetas que fazem essas descobertas nas falas cotidianas, como se apenas riscassem uma paisagem manjada para que enxerguemos que ali não se vê uma realidade, mas uma tela, uma representação - que a transparência da linguagem é uma ilusão enfim. Eu penso, por exemplo, no Frank O'Hara, no Francisco Alvim, num certo Manuel Bandeira. E para falar dos mais novos, na Ana Martins Marques, na Alice Sant'Anna, no Fábio Weintraub.

Fábio Weintraub

ESTILO
(de uma entrevista com Tom Waits)

I .

A maneira pela qual
você faz
uma coisa
é a maneira
pela qual
faz todas as coisas

Você lava o carro
do mesmo jeito que
corta o cabelo
anda a cavalo
cria seus filhos

Depois dos filhos
todo o resto
fica (muito) fácil.

II.

É como pescar
ou caçar passarinhos
Você cava um buraco
na parede
e espera
que alguém
ou alguma coisa
cave de volta
na sua direção

III.

Como faço
para ter uma voz
assim grave?

Grito com a cara no travesseiro
Grito com meus filhos


Outros poetas usam um registro mais erudito, clássico, mantendo, no entanto, para quem domina seu léxico rebuscado, as imagens intactas. Como os primeiros, são ainda, como muitos pintores pré-modernistas, artistas figurativos. Este poema do Horácio Costa ilustra bem o caso.

AUTORRETRATO NUM ESPELHO DE HOTEL

Nu, toalha nenhuma amarrada estrategicamente
Na cintura, a barba enrolada em cachinhos não
Mas desenhada como a de Prince, primeiro
Role-model,
Incide a luz como tem que ser: da direita inferior
E difunde-se para quem me vê como uma aparição
Poderosa, um Andrea Doria overweighted
Pintado por Bronzino não
Mas visto através da lente
De uma Diane Arbus
Compassiva.
“Ventripotent”, aprendi quando não tinha pança,
Na Aliança Francesa; logo depois os burgueses
De Hals me ensinaram que pode-se parecer bêbado
E próspero. Mas a minha cor
Raramente transparece a rosácea
Que floresce na derme holandesa:
Sou da tez, da consistência
Do Bacchino malato de Caravaggio,
Da dúbia cor dos romanos
Do Sodoma.
Um corpo que fora bem torneado
Pensa-se Tritão, ostras e mariscos
Pendurando-se pelo torso, por ti
Surpreendido face ao espelho.
Pensa-se Tritão, vê-se Netuno:
Nada melhor do que a tênue
Asa da mitologia
Para encobrir
A cor, o tempo, a pança.


Em ambos os grupos, coloquiais ou eruditos, é possível identificar autores mais experimentais. Gente como a Angélica Freitas e o Marcos Siscar para continuarmos com exemplos contemporâneos.

Marcos Siscar

REVERSIBILIDADE DE BEIJOS

vou viajar preciso de um beijo
você me diz de um jeito largo
refém da experiência sim já não
é pouco isso de querer dar sem
abrir a boca isso de querer cair
de boca seca no café pingado
sua carne branca seu estômago
fraco recitando sem pensar
uma ocasional filosofia isso de ter
sem querer de me deixar sem
pedir à beira de um zigoto mofo
à beira de um bonde de partir nós
somos irmãos ambos mudos me dê
vou viajar preciso de um beijo


No pólo oposto da poesia experimental, há quem coloque, por exemplo, o Vinícius de Moraes - o mesmo Vinícius que se costuma colocar contra João Cabral de Melo Neto (como se colocasse a intuição contra o cálculo e a gratuidade contra o rigor).

É uma questão interessante. De qual Vinícius falamos aqui? Porque em muitos poemas ele também foi experimental, como nos lembra o Ricardo Domeneck ao comentar na revista Modo de Usar & Co. a fortuna sinuosa do autor - o que me leva a questionar se pode haver um poeta que, pelo simples fato de ser poeta, não seja também experimental.

Nessa linha, há quem desmantele completamente o mecanismo linguístico que produz artificialmente a realidade e o sentido (como o relógio fabrica o tempo). Autores que abandonam a sintaxe e a semântica, tanto a erudita como a popular; que desdenham da língua em sua função referencial; que experimentam como as palavras podem significar algo apenas pelo seu som, pela sua forma, pela sua materialidade, sem que seja necessário recorrer ao léxico. São autores que atacam até a própria existência de um autor. É uma poesia eminentemente plástica ou fonética como foi a de vários dadaístas. Como foi a de Kurt Schwitters.

"The critic"(1921), Kurt Schwitters


Eles são como aqueles artistas que, rompendo com a tradição figurativa, fizeram arte abstrata - uma arte que não nos apresenta nenhum conteúdo, nenhuma figura reconhecível, somente arranjos peculiares de matéria sensível que nos comunicam os sentidos do sentir.

Em uma linha muito próxima a essa seguiam os construtivistas. É o que podemos ver neste poema visual do Maiakovski.

"Poema do anel" (1923), Vladmir Maiakovski


Os construtivistas mais radicais, além de abandonarem a figuração, pretendiam criar construções e não representações, rompendo com qualquer intenção simbólica em suas obras. Não lhes interessava produzir sentido algum, seja ele cognitivo ou, como era o caso dos artistas abstratos, meramente sensível. O que é difícil conceber se reconhecemos o ser humano como um animal simbólico, um ente da linguagem, que a tudo atribui significado. Se não fosse o caso, por que os adeptos do construtivismo gastariam tanta tinta para explicar os seus projetos? De fato, o sentido das suas obras pode ser encontrado em seus discursos, nas respostas da crítica, nos balanços dos historiadores, na cobertura jornalística, nos comentários dos seus apreciadores.

A propósito, para concluir, uma lição da arte conceitual pode ser bastante útil agora: muitas vezes o significado de uma obra de arte tem muito mais a ver com o contexto do que com o texto. É o que provam os ready-mades, sejam eles plásticos ou literários, como este poeminha do Francisco Alvim:


Mas

é limpinha.


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