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Mostrando postagens de abril, 2020

Ponto de encontro

No interior, a política local é naturalmente um lugar do encontro. Não há como evitar os vizinhos desse condomínio que é a pequena cidade, ou vê-los apenas de longe, passeando no feed de uma rede social qualquer. É preciso organizar o espaço comum, dividir a calçada, a cortesia nas festas da comunidade e até o ar que se respira nos poucos consultórios do lugar. Obviamente, há sempre paranoicos percorrendo os quarteirões. Mas eles tendem a ser marginalizados e esquecidos pela maioria - ou se tornam figuras folclóricas bastante conhecidas, desde que tomem diariamente o seu remédio. As pessoas, quando compartilham o mesmo espaço, tornam-se politicamente pragmáticas e consideravelmente mais gentis umas com as outras, perdendo quase toda a sua agressividade ideológica, assim como a sua eventual ideologia de agressividade. Não é como no Twitter ou no Facebook, onde você pode xingar os adversários dos outros partidos à vontade sem ter medo de encontrá-los quando, logo ao sair de ca

O que se passa quando não se passa nada

Fazer um coração saudável bater mais forte na vida é algo banal, incomparavelmente mais do que num romance. Acontece várias vezes ao dia sem que alguma ação, nem mesmo uma após a outra, faça um autor parar de bocejar. Mas você e eu conseguimos imaginá-las: 1. um cão late inesperadamente enquanto você caminha distraído, 2. você quase bate o carro porque foi ver uma mensagem no celular, 3. enxerga do outro lado da rua alguém que pode ser um bandido, 4. se irrita porque um colega de trabalho é um tremendo cafajeste. São muitos, os exemplos. Em qualquer caso, a emoção é garantida. Nas redes sociais, o coração anima-se ainda mais facilmente. A pessoa, suponhamos, publica dois ou três stories no Instagram. Então passa o resto do dia com o coração aos pulos - será que alguém responderia? Quem? Mais alguns pulos no coração por isto. Pode ser um velho amor, o crush dos últimos dias, a primeira mensagem de alguém, digamos, interessante. Se isso merece a

Falar para não morrer

Em Nova Iorque, onde a quantidade de mortos ao dia é um pouco menor que o total registrado aqui até agora, começaram a enterrar em longas valas comuns os mortos não reclamados. Um caixote sobre o outro, coluna após coluna, que, depois de ajustadas no solo, são cobertas com terra por uma retroescavadeira. Entre os vivos, não se vê ao redor alguém chorando esses mortos. Comentamos todos, horrorizados, a cena uns para os outros - procuramos saber se nos ouvem aqueles que um dia, esperamos, reclamem os nossos corpos com respeito e saudade.

Demoras

1 Tentava há pouco me lembrar há quantos dias estamos em quarentena. Pelos meus cálculos, esta deve ser a terceira semana. Preciso anotar para não esquecer - este é um risco que começo a sentir agora. Eu poderia consultar o site do governo a qualquer momento, é certo, mas assim eu deixaria de me ater à realidade - a memória conta sempre a história mais verdadeira quando precisamos conhecer as pessoas como elas são de fato. 2 Ontem uma amiga me falou que ganhamos, com a reclusão, a oportunidade de lançar um olhar mais delicado sobre as coisas. Agora há tempo para demoras, contemplações e gentilezas. Eu entendo o que ela quis dizer. Sinto-me um pouco assim. Não pude deixar de pensar porém, com uma certa vergonha, em nosso privilégio. Moramos à beira do campo, em casas com jardim, quintal e pouca gente. Podemos ser espaçosos. E cada qual, nos labirintos da sua biblioteca, encontrou afortunadamente alguma alma mais valente que a sua, com quem aprendeu a não desviar o olhar d

Amor e Verdade

1 Já que durante a quarentena parece um exagero saudar alguém com um bom dia, outras formas de solidariedade têm sido adotadas. A que me chamou atenção logo de manhã chegou pelo WhatsApp: "agora é a hora da fé". Escuto cada vez mais variações dessa frase, as quais, no entanto, não mudam o seu sentido. Quem não tem fé é duplamente perseguido, pelo terror e pelo vírus, ela sugere. Por ser levemente mais curioso do que fervoroso, não pude deixar de lembrar de um velho amigo ateu. Como qualquer um de nós, ele pode vir a morrer infestado, mas não morrerá de medo, eu acho. Semana passada, o Abreu comemorava a purificação dos ares e o regozijo das raias, que brincavam cruzando as ondas de uma praia, interditada estes dias para os humanos. - Nós é que somos a peste, ele me disse, porém preferimos culpar a Deus ou ao Diabo, dependendo da ocasião. 2 - Devo reconhecer que Jesus é uma pessoa extremamente amável. Seria mais ainda se as igrejas não monopolizassem a sua ami

passatempo

por enquanto você está bem você acorda encontra comida na geladeira esquenta um café pra despertar você trabalha não importa se de casa você realiza aprende algo novo por enquanto você encontra tempo pra mais um dia fazer a sua yoga conversar com os amigos ler um novo livro toma coragem e decidi finalmente começar uma carreira como instagrammer por enquanto você está bem a vida continua sendo o que sempre foi tudo aquilo que ocorre por enquanto