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Já que durante a quarentena parece um exagero saudar alguém com um bom dia, outras formas de solidariedade têm sido adotadas. A que me chamou atenção logo de manhã chegou pelo WhatsApp: "agora é a hora da fé".
Escuto cada vez mais variações dessa frase, as quais, no entanto, não mudam o seu sentido. Quem não tem fé é duplamente perseguido, pelo terror e pelo vírus, ela sugere.
Por ser levemente mais curioso do que fervoroso, não pude deixar de lembrar de um velho amigo ateu. Como qualquer um de nós, ele pode vir a morrer infestado, mas não morrerá de medo, eu acho.
Semana passada, o Abreu comemorava a purificação dos ares e o regozijo das raias, que brincavam cruzando as ondas de uma praia, interditada estes dias para os humanos.
- Nós é que somos a peste, ele me disse, porém preferimos culpar a Deus ou ao Diabo, dependendo da ocasião.
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- Devo reconhecer que Jesus é uma pessoa extremamente amável. Seria mais ainda se as igrejas não monopolizassem a sua amizade.
Ouvi do Abreu essa frase outro dia. De vez em quando, ele fala coisas assim, o que me dá a impressão de que o meu amigo não é um ateu genuíno.
Nessa ocasião, ele começara a conversa perguntando-me com gravidade por que motivo um investigador como eu era capaz de, ao mesmo tempo, militar na ciência e acreditar em coisas tão improváveis como as fantásticas histórias da Bíblia.
- Mas não é assim que começamos qualquer investigação, imaginando a possibilidade de coisas até então inacreditáveis?
- Mas não é assim que as terminamos.
- Talvez eu não tenha terminado a minha apenas...
- Talvez você não queira terminá-la, ele me respondeu sorrindo, mal disfarçando a sua satisfação por me encurralar sem piedade.
- No fundo, eu não acho necessário, reagi com honestidade, a única arma que eu tinha. Não investigo a prova histórica de Cristo pela mesma razão que não me ocorre questionar a existência de Rieux, o protagonista daquele romance do Albert Camus, A Peste. São escolhas afetivas. Eu me ligo a eles pela humanidade, não pela ciência.
- Ora, ora, mas você não pode amar Jesus assim, meu caro, sem nenhuma teologia, sem nenhuma autoridade. Pergunte em qualquer igreja.
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Comparar Jesus a um personagem literário não é a melhor maneira de ser respeitado por seus concidadãos em um país religioso como o nosso, nem mesmo por um ateu.
Por isso talvez, Abreu, algumas semanas depois, me importunou com uma pergunta que interrompeu bruscamente as nossas especulações sobre o destino da democracia e da liberdade no mundo.
- Ao contrário do doutor Rieux, Jesus foi publicado como um personagem histórico, não como uma invenção literária. Os evangelhos são relatos de testemunhas!
- O autor de um romance também escreve sobre aquilo que testemunha. A ficção é normalmente uma estratégia para falar das coisas estranhas que vemos e vivemos sem que tenhamos que sofrer um processo por difamação, um jeito de retratar pessoas peculiares sem fazê-las passar vergonha por serem peculiares, a começar pelo próprio autor.
- Assim, você resume a ficção a um álibi, meu camarada. A literatura é um ato de desobediência civil em favor dos homens, uma grande generosidade, por mostrar que as suas vidas não são tão previsíveis e acanhadas como supõem as regras dos bons costumes e do senso comum.
- Quando a ficção não se acovarda, virando mera bajulação e entretenimento, sim, eu concordo. E é nesse sentido que ela é mais verdadeira do que a verdade. Curiosamente, nos evangelhos, Cristo é morto por insistir com os homens sobre tal tipo de compaixão.
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